Os Mistérios do Amor Conjugal em Cantares
No centro
de Cantares está o amor que se exprime com naturalidade, simplicidade, pureza e
calor a sua paixão e intimidade.
"Que ele me beije com os beijos da sua
boca!" (1.2)
Cantares é a obra mais romântica e simbólica da
literatura universal. Seus símbolos ilustram o amor em uma profusão que o
leitor fugaz não percebe. Trata-se de uma óde atemporal, que representa o amor
entre um homem e uma mulher do modo mais sagrado e belo.
No centro de Cantares está o amor que se exprime
com naturalidade, simplicidade, pureza e calor a sua paixão e intimidade:
“gritos de alegria, a voz do noivo e a voz da noiva” (Jr 7.34; 16.9; 25.10).
Justamente por causa da absoluta universalidade dessa experiência, os símbolos
usados em Cantares são constantes e logo perceptíveis, pelo menos a nível
global, embora nos detalhes estejam carregados de conotações orientais,
exóticas e, às vezes, exasperadas.
Amor
Cantares é um encontro com o amor. Trata-se de um
verdadeiro minivocabulário de palavras repetidas dezenas de vezes, porque o
enamorado nunca se cansa de dizer à sua mulher: Tu és fascinante (na’wah); és
encantadora (iafah); minha amada (‘ahabah); minha irmã (‘ahotî); minha esposa
(kallah); meu tesouro (ra ‘iatî); amor de minha alma (‘ahabah nafsî), minha
única (6.9). Cantares convida o homem moderno a expressar sem medo ou receio o
seu mais profundo amor à mulher amada. Desperta o amásio a expressar as mais
significativas e belas frases de amor. A palavra é geradora de sentimentos e
fertilizante para o coração.
E para a mulher, o esposo é sempre dodî, “o
meu amado”. É assim que o coração é arrebatado (4.9), a paixão é fremente
(7.11; 8.7), a delícia (5.17) cancela a vergonha (8.1,7), o anelo inconsciente
(6.12) gera contemplação (7.1) e predileção (6.9). Há quase um desmaio de amor
(2.5), numa espécie de doença incurável (2.5; 5.8), num sono estático (2.7;
3.5; 5.2; 7.10; 8.4,5), numa embriaguez (5.14), num desfalecimento incitante
(5.6). Mas também há o medo que perturba (6.5), há a ausência insuportável
(5.6), os pesadelos noturnos (3.8). Mas tudo se esvaece e apenas ouve-se aquela
voz doce e suave (2.14). Então tudo volta a ser triunfo dos sentidos numa
espécie de paraíso do olfato e do paladar: os frutos do amor são saborosos
(2.3; 4.16; 7.9,14), são mel, néctar, leite (4.11; 5.1,12), doçura para o
paladar (5.17) [1].
O amor é comparado a cheiros e sabores. Na carreira
diária, às vezes, nos esquecemos do estro que nos torna humanos. Colocamos os
nossos sentidos reféns do vil metal, enquanto eles são indispensáveis ao
conhecimento do outro. Não se ama sem odores e cheiros. O amásio conhece o doce
cheiro de sua amada e o paladar de seus lábios. O amor demonstrado na obra
eleva o amor a um estado de completo arrebatamento. O poema recomenda aos
amásios a sentirem o cheiro e o sabor um do outro. É um convite ao verdadeiro
encontro! Nesse amor sublime, nada espiritual e muito menos mundano, os amásios
são convidados a viverem com toda intensidade a sua plena humanidade e
conjunção carnal nos laços do matrimônio.
Corpo
Não existe, de fato, um livro bíblico que siga tão
intensamente a realidade do corpo em todos os seus meandros e segredos e em
toda a sua aparência. Vemos o rosto (2.14; 5.2,11; 7.6; 8.3) com a boca aberta
ao beijo (1,2; 4.3; 8.1); e à voz (2.8,14; 5.2; 8.12), com os lábios frementes
(4.3,11; 5.13; 7.10), com a língua (4.11), com os dentes cândidos (4.2; 5.12;
6.6), com o paladar que deseja saborear (5.16; 7.10); e o nariz atraído pelos
perfumes (7.9), com as faces 1.10; 4.3; 5.13; 6.7), com os olhos (1.15; 4.11;
5.2,11; 6.5; 7.5; 8.10) que muito se movem e piscam (2.9) ou ternos (4.9), com
os cabelos e as tranças (4.1,6; 5.10), com o pescoço harmonioso (1.10; 4.4;
7.5).
Nada mais óbvio do que afirmar que cada detalhe da
amada ou do amado não passa despercebido ao verdadeiro amor. Em uma cultura que
aprendeu a ditar suas regras estéticas e seus gostos artesanais à moda
Michelangelo, o ser (Dasein) desaprende a ver as qualidades intrínsecas da
própria fisionomia humana, irretocável. Não importa o formato do nariz, o
importante é usá-lo para cheirar os mais preciosos odores do cônjuge. Pouca
importância tem a densidade dos lábios, o essencial é saborear aquilo que o
amor reservou para os amantes. A cor dos olhos não cativa tanto quanto o seu
brilho. Quem ama encontra suas próprias razões para amar, apesar de tudo.
Depois, eis o corpo ereto (2.9; 7.8) que se ergue
solene (2.10,13; 3.2; 5.5), que aperta com força o ser amado (3.4), que abraça
(2.6; 8.3,6), que dança de júbilo (2.8), mas que também é plantado sobre as
pernas e sobre os pés (5.3; 7.2). [2] O corpo é visto em Cantares como um
cântaro cheio de surpresas e venturas.
O amor, sentimento difícil de ser descrito em palavras, tem através das imagens corpóreas do Cântico a sua mais elevada expressão e propósito. Se ama verdadeiramente quando se entrega. Tentaram em vão, Orígenes e São Bernardo, explicar as imagens corporais como símbolos da virtude cristã, ou sabedoria e ciência. Pobres teólogos mortais...que se negam a amar e a reconhecer que o amor entre cônjuges é uma dádiva da criação divina!
O amor, sentimento difícil de ser descrito em palavras, tem através das imagens corpóreas do Cântico a sua mais elevada expressão e propósito. Se ama verdadeiramente quando se entrega. Tentaram em vão, Orígenes e São Bernardo, explicar as imagens corporais como símbolos da virtude cristã, ou sabedoria e ciência. Pobres teólogos mortais...que se negam a amar e a reconhecer que o amor entre cônjuges é uma dádiva da criação divina!
Observa-se também o esplendor dos seios (1.13; 4.5;
7.4,8,9; 8.8,10), a perfeição dos quadris (7.2), da bacia (7.3), do ventre
(5.14; 7.3). Os seios com todo o seu esplendor é o repouso do abraço
apaixonado! Um dado muito interessante relata em 7.4: os seios como crias
gêmeas da gazela. Nada mais risonho, infantil e dócil. Nego-me a aceitar a
interpretação de que os dois seios são as colinas de Ebal e Gerizin. Trata-se
da mais eficaz sedução da parte da amada, que desejam os intérpretes reduzir a
duas colinas vetustas e de valor espiritualmente simbólico. Ao movimentar
freneticamente os quadris, os seios movem-se rapidamente, lembrando ao amado os
gamos gêmeos saltitando pelos bosques.
Eis ainda, acima de tudo o coração que, na
linguagem bíblica é sinônimo de consciência, inteligência e amor (5.4; 8.6).
Nessa luz, o conhecimento recíproco dos enamorados não acontece só através da
mente, mas também da paixão, dos sentidos, da ação e da alegria que se completa
na plena realização sexual do casal: Meu bem amado põe a mão pela fenda e
minhas entranhas estremecem. Não precisamos "abrir o verbo" para não
corar os mais tímidos! Os símbolos "mão" e "fenda", desde a
Antiguidade representavam os órgãos sexuais masculino e feminino, e no mínimo,
aqui, as carícias entre os cônjuges. A destreza do amado é comparada em 5.14 à
"mãos de ouro torneadas, cobertas de pedras preciosas". Cântares
convida o casal a viver a vida sexual em sua completude, sem receios ou moralismo
hipócrita que impede a felicidade dos cônjuges. Viva plenamente!
Perfumes
Cantares é permeado por perfumes (1.3,12ss; 2.13;
3.6; 4.10-11; 5.13; 7.9,14): Nardo (1.12; 4.13), cipreste (1.14; 4.13); bálsamo
(2.17; 5.1,13; 6.2; 8.14), essência exótica (6.6; 4.14), incenso (3.6),
açafrão, canela e cinamomo (4.14). Existe até mesmo um “monte da mirra”, uma
“colina do incenso” (4.6) e os “montes do bálsamo” (8.14). A suavidade do vinho
é a comparação mais espontânea para exprimir a embriaguez e doçura do amor
(2.4; 4.10; 5.1; 7.3,10; 8.2). Nada melhor do que comparar o amor ao cheiro
exótico da canela, que se supõe poderes afrodisíacos! As plantas odoríficas
estão plantadas no "jardim fechado", figura que destaca o mistério, o
espanto e assombro que é o amor de uma mulher com o seu marido. Ela é um jardim
fechado em cujo canteiro estão plantados diversas ervas aromáticas que jamais
poderiam crescer juntas. Esse jardim fechado também é um belo e delicioso
pomar, cujas frutas saborosas são para a degustação dos amados. É um paraíso de
romãs (4.13), um pomar das delícias que só o encontro assombroso entre um homem
e uma mulher poderia desfrutar. O jardim das delícias é carregado com o cheiro
do amor e dos sentimentos que se perpetuam e se fixam com os odores das
plantas. Trata-se, na verdade, de um convite ao amor, comparado a pomares e
ervas aromáticas. Um mistério que somente os que amaram intensamente são
capazes de revelar.
Objetos Preciosos
A vista e o tato são envolvidos, seja por causa do
contato físico entre os dois corpos, seja porque o esplendor do amor é pintado
segundo as impressões produzidas por deslumbrantes objetos preciosos: Ouro e
prata (1.11; 3.10; 5.11,13,15; 8.9,11,12), pérolas e brincos (1.10,11; 4.9),
coroas (3.11), selos (8.6), taças (7.3), madeira nobre do Líbano (3.9);
bordados (3.10), púrpura (3.10; 4.3; 7.6), safiras (5.14), marfim cinzelado
(5.14; 7.5).
Jardim
Sobre o jardim brilha o sol (1.6; 6.10) e se
reflete a lua (6.10). Sucedem-se as auroras e as noites (6.10; 7.12,13), descem
as sombras (4.6), sopram o aquilão e o austro (4.16), sopra a brisa (2.17;
4.6), levantam-se colunas de fumaça (3.6), gotejam as chuvas e o orvalho (2.11;
5.2). O jardim “fechado” (4.12) é a figura do “eu feminino”, a “inviolabilidade
da pessoa”, um “mistério inatingível contido no corpo da mulher e do seu
parceiro”. Salomão salienta que a amada é exclusivamente dele, como um jardim
que pertence unicamente ao seu dono, sendo inacessível a todos. Também os poços
e fontes eram, às vezes, selados para preservar água, coisa mais do que
preciosa no oriente, evitando que outros a tomassem.
Finalmente, só poderíamos terminar com o verso mais
célebr